“Escrevo essa carta na esperança de que você leia e não me julgue, afinal eu não preciso que mais pessoas apontem meus erros e me critiquem por minhas escolhas. Eu acerto e erro como todo o ser vivo que viveu, vive e viverá nesse imundo planeta. Eu desisto da minha vida pois não tenho esse instinto predatório e cínico que é preciso ter para viver nessa sociedade sórdida e maldita. Posso ser considerado fraco, inútil e a vergonha da família, sim, mas eu não sou hipócrita para sorrir apenas para parecer vivo. Termino com a minha vida pois não tenho saída, não tenho vontade e não quero viver mais um dia de tristeza, solidão, medo e ódio. Só peço desculpas a minha mãe, apenas a ela. Ela fez de tudo que esteve ao seu alcance para me criar… Mas agora se decepcionará comigo mais uma vez… Desculpe mãe!”
Com os pés descalços ele sentia o frio do piso, que subia por suas pernas e atingia seu coração, que estava mais frio ainda. Leu e releu carta mais uma vez e a deixou em cima da tampa do assento do vaso sanitário e se encarou no espelho. Nesses últimas semanas suas olheiras e rugas aumentaram e muito, era estranho como o sofrimento mudava a aparência de alguém, algo que não é palpável e visível como um tumor, mas que cresce e prejudica tanto quanto. Suas lágrimas nem caiam mais, secaram como seu coração e alma que esvaíram-se do seu corpo a muito tempo. A decisão já foi tomada e não há volta, ele a manteria ao contrário de muitas outras. Ele agarrou o pote com os medicamentos tarja preta e engoliu umas 5 pílulas de uma vez, em seguida deitou-se na banheira com água quente e cortou seus pulsos e fechou os olhos, o agradável calor subiu e tomou conta de seu corpo, um relaxamento extremo como se estivesse deitado numa nuvem. O quente abraço da morte o alcançou e esperou sua hora.
Seu momento.
Mas ele nunca chegou.
Abriu os olhos e viu uma luz forte, esperou seus olhos se acostumarem e encontrou-se numa cama de hospital. O lençol tocava-o em cima e embaixo de seu corpo, o tecido leve e desagradável. Notou o cheiro de hospital, o cheiro característico de dor, sangue, substâncias químicas e morte, o doce cheiro que incomoda todos, que infiltra-se nas narinas e se espalha pelo corpo, causando a amarga sensação de sofrimento. O quarto era sóbrio e claro , com camas de metal e muitas estantes, que continham ampolas e diversos remédios com nomes complicados. Sua mãe estava ao seu lado, segurando sua mão e dormindo numa cadeira . Foi tudo repentino, mas notou que seu plano de se matar não deu certo. Estava vivo e bem.
Seria uma derrota ou uma vitória?
Antes de se decidir, suas pálpebras pesaram e seu corpo relaxou, o doce sono o aqueceu e o tirou daquela terra de dor e medo.
Acordou mas não abriu os olhos, o odor entrou em suas narinas primeiro, ouviu vozes, barulhos tilintantes de instrumentos metálicos, bips de máquinas e gemidos de dor. Ainda estava no hospital, notou o mesmo cheiro e a mesma sensação do outro despertar, mas dessa vez teve que se levantar. O dia já havia nascido e banhava de sol o seu quarto, forçou-se a olhar a janela e viu o céu num azul límpido, sem nuvens, um lindo dia.
-FILHO ! – Ouviu o grito de sua mãe, ela veio correndo e parou na sua frente. Ambos se encararam, uma amálgama de sentimentos passavam pelos olhos da sua mãe.Felicidade sim, era o principal, mas também havia tristeza, raiva, decepção e desespero naqueles olhos negros, negros e vermelhos, negros vermelhos e inchados como se ela tivesse chorado todas as lágrimas possíveis que uma mãe pode chorar pela apreensão da morte do filho. Seu cabelo era negro e estava desalinhado, já possuía os fios grisalhos que acusavam os seus 59 anos de idade. A pele desmentia a idade, era firme e lisa, com poucas rugas e num lindo tom de oliva. Jamais deveria ter passado pelo que passou, apenas a possibilidade de perder um filho era injusta para uma pessoa como ela, imagine então, ter um filho suicida.
-Mãe, por favor me perdoa. Eu não sou e nunca fui um bom filho pra você, o que eu fiz foi algo extremamente egoísta… Me perdoa por favor.
E ajoelhou-se diante dela, lágrimas escorriam e o desespero de novo corroía seu coração. A dor era maior do que as cicatrizes e chagas deixadas pela tentativa de morte. Agarrou os joelhos dela como se fosse um tronco e ele estivesse num rio de forte correnteza.
-Não falaremos disso filho, agora não. Por favor. – Disse ela, secamente. Pôs as mãos nos ombros dele, deu um sorriso triste levantou-se e virou de costas. Ficou parada ali por uns instantes e disse. “- Estava procurando alguma coisa pra comer e recebi a noticia de que você tinha acordado, vim te ver… Bom agora vou procurar alguma coisa para nós comermos.” E saiu sem olhar pra trás.
Era óbvio que ela não estava bem. Estava desmoronando, já não bastasse todo o sofrimento do marido assassinado, 2 abortos e desempregada, ainda tinha um filho com tendências suicidas. Era demais para qualquer ser humano, mas ela é uma deusa, e deusas não podem se abalar.
“Seria melhor dar um tempo para ela, deixar ela sozinha, por enquanto” Pensou. Nesse momento começou a andar pelo corredor onde estava, notou que estava perto da maternidade.
Que Ironia.
Um suicida internado perto de onde a vida surge . Era tão ridículo que ele teve que rir, não podia ser coincidência, o médico que o tratou escolheu com certeza aquele quarto de propósito, por ser o mais próximo dos bebês. Aproximou-se lentamente da janela para ver os pequenos, por mais que odiasse crianças, elas agora exerciam um magnetismo nele, o chamavam silenciosamente… Convidando-o para ver a dádiva de recém nascidos. Ele olhou pela janela e viu dezenas de pequenos seres chorando, dormindo, rindo, todos eles em pequenas caixas e enrolados em roupas azuis e rosas. Aqueles pequenos homens e mulheres, trazidos ao mundo para sonharem com astronautas e princesas, e acabarem como tatuadores ou Atendentes de telemarketing. Terem seus desejos esmagados pela sociedade vil, e não terem outra escolha a não ser engolir o o choro , abaixar a cabeça e seguir rumo a morte. Algo chamou a atenção, havia outra sala no fundo do berçário, que continham algumas outras caixas com bebês, caixas de vidro enormes, onde minúsculos bebês eram cercados por tubos e sondas, ligados a máquinas que os mantinham vivos.
Essa era a pior ironia de todas.
Da qual ele não teve coragem de rir.
Aqueles eram bebês prematuros, humanos que tinham tanta vontade de ver o mundo que nasceram antes do tempo e que agora lutavam pelo direito de vida. Algo que ele quis deliberadamente acabar, tão precioso para aquelas pequenas almas e ele descartou como algo fútil.
Sentiu o baque.
Atingiu-o como uma bola de canhão, bem no peito. Bum. E os ferimentos não jorravam sangue, e sim melancolia. A tristeza nunca o acertou como naquele instante, de repente tudo fazia sentido, mas ao mesmo todas as coisas não tinham absolutamente nenhum significado. Uma quantidade de sensações ruins preencheram seu corpo, virou-se e encostou na parede, sentindo o frio contra suas costas, ele foi desabando em amargura, tecendo lágrimas quentes e com o gosto do sal, o elemento que exorciza seus demônios. Não podia ficar ali, tinha que correr, não aguentaria nem mais um simples momento naquele hospital, era grande o peso do mundo e de suas péssimas decisões sobre seus ombros. O medo de viver batia a porta de seu coração, aquela angústia de que nunca nada ia dar certo ameaçava voltar à tona. Agarrando os joelhos e com a cabeça entre as pernas, queria que o mundo acabasse ali.
Mas não acabou.
Ele não acreditava em milagres, já tinha desistido de Deus e qualquer religião há muito tempo, mas bem em sua frente, estava um anjo.
Um anjo de luz.
Com feições tão belas como se fosse possível, o anjo possuía um sorriso branco como um colar de nuvens num céu de verão, maçãs do rosto vermelhas e salientes, olhos negros e sorridentes, brilhantes e seu cabelo dourado como as portões do paraíso. O anjo se agachou e se aproximou, e nesse momento, ele se envolveu com a fragrância sagrada que o anjo transmitia.
Um cheiro de cigarro mentolado.
Nesse minimo instante, ele acordou do transe e viu a pessoa a sua frente. Não era um anjo, era apenas uma mulher. Com um sorriso triste ela o encarou:
-Eu falaria pra você não chorar, mas provavelmente você deve estar cheio de lhe falarem isso, então é melhor chorar. E tem que ser por um bom motivo.
-Acabo de ver como eu sou hipócrita e egoísta… Eu não mereço a vida.
-Talvez sim, talvez não. Nunca vai saber… Resta apenas viver e tentar aproveitar ao máximo que se pode. A vida não é um dom ou maldição, a vida é apenas o que é: a vida.
Ela tinha razão. Mesmo não sendo o anjo que ele viu da primeira vez, suas palavras eram arrebatadoras como se fossem proferidas por um enviado de Deus. Ele reparou em seu rosto, bonito, porém triste. Talvez tivesse passado por muitas provações nas últimas semanas, como se um anjo tivesse lutado em uma guerra contra a própria morte.
-Venha, quero te mostrar uma coisa.
Ela agarrou sua mão e o levou para dentro do berçário, atravessou a sala até onde os bebês prematuros estavam. O levou até a frente de uma caixa, onde um dormia a sono profundo.
-Esse é meu filho. Lindo não?
Não sabia o que falar, o anjo era mãe de um bebê prematuro.
-Sim, lindo!
-Ele já me enche de orgulho. Mesmo sendo de uma gestação dificil, lutou fortemente contra todos os problemas que surgiram. Mesmo tendo que nascer antes do tempo, se agarrou a vida e nunca deixou ela sair perto dele. E foi recompensado com uma mãe que percebeu o quanto a vida é maravilhosa, e que vai fazer de tudo para ajudá-lo.
Ele sorriu, e percebeu o sinal. Seja de Deus, Buda ou do universo, ele entendeu o que precisava fazer.
Apenas lutar.