Cidadão Quem

O teto continuava o mesmo. O mesmo tom de bege, com a textura de grafiato e uma pequena rachadura, ínfima, devia ter um milímetro. Devia se preocupar com isso, mas tinha coisas piores para se preocupar. Não queria se levantar, estava cansado e era uma segunda chuvosa e nublada, típico dia para odiar o mundo. Nos próximos cinco  minutos ele tentou fechar os olhos e morrer, visualizou com toda força possível e imaginável que aquela rachadura abrisse e o teto desabasse em sua cabeça, rapidamente pedaços gigantes cairiam e esmagariam cabeça, pele, ossos, cérebro e alma.

Mas nada aconteceu. Como sempre, aqueles cinco minutos de sono e desejo de morte não funcionaram e o despertador tocou aquele som irritante, estridente, que abalava sua mente e ecoava no seu crânio, um barulho agudo e forte que soava como um sino do inferno, e doía como facadas no seu ânimo. Levantou-se e jogou a coberta no chão, foi arrastando os pés até o banheiro, lentamente, pé ante pé, abriu a porta sanfonada e se pôs defronte ao espelho. Não acendeu a luz, ficou se olhando no escuro, pois ainda eram 5 da manhã, e o sol não havia nascido e as trevas reinavam no ambiente. Pensou muito antes de acender o interruptor, mas por fim adiou o inevitável, apertou a tecla e o ambiente se iluminou, a luz cobrindo o ambiente e ele se viu.

Esse dia estava ruivo.

A pele estava cheia de sardas, e os olhos verdes refletiam mais uma transformação. O cabelo pelo menos era liso, jogado para o lado, uma franja caía em seus olhos, de um forte tom acobreado. Os lábios eram volumosos. “Segunda feira ruivo? Que bosta.” Odiava ser ruivo, era motivo de muitos olhares , meninas hipster que o olhavam e imaginavam nele “o- lenhador-viril-irlandês-que-a-levariam-pra-casa”. Mas era sua maldição, seu encargo. Trocar de rosto todo dia, um rosto belíssimo, sim mas sempre diferente. Não sabia como tudo aquilo havia começado, mas já fazia tempo, desde que se lembrava. Sempre uma cara alternativa, nunca seu velho rosto cheio de marcas de espinhas, cabelo grosso e sobrancelhas grossas. Era horrível, todo dia uma nova história, uma identidade maldita. Quando tinha seu feio cenho, , sempre desejou ter uma bela feição, uma vida melhor e mais interessante, ou uma chance para recomeçar. Ora, que bela justiça poética, hein? O seu desejo se tornou realidade, mas parece que quem escutou  o pedido foi o demônio, alterando e refinando o pedido para ferrar com ele.

O dia começava e sua nova história também, todas as pessoas gostariam de ser belas, de poder mudar sua história, mudar tudo o que não gostavam. E ele tem isso, mas todo dia. Todo fucking dia Ele não podia criar a sua história, não podia criar seus méritos e muito menos pensar no futuro. Efemeridade ao pé da letra, dinamismo escroto de uma vida, a rotina da mudança incontrolável que ele tinha. O bom de tudo isso é que ele não era mais um clichê e vivia um ciclo de interrupções ininterruptas, que mudavam e mudavam ao longo do infinito.

Mas como é infinito se acaba em 24 horas?

-É melhor eu ir trabalhar. – Disse

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